terça-feira, 22 de abril de 2025

Entre o trono e o espelho - quando o louvor se torna autoajuda


 Por Jânsen Leiros Jr.

 O que estamos realmente cantando quando louvamos?

Uma provocação necessária: estaríamos exaltando a Deus — ou apenas massageando nossos egos pilhados de religiosidade?

Bob Kauflin

“O louvor é a prática de valorar Cristo acima de tudo; é o transbordar de um coração cativado pela cruz.”

Matt Redman

“A chave para um louvor verdadeiro são os adoradores, não a performance; é um povo rendido que responde ao Rei.”

John Piper

“Deus é mais glorificado em nós quando estamos mais satisfeitos n’Ele, e o verdadeiro louvor nasce dessa satisfação, não de auto exaltação.”

John MacArthur

“O louvor não existe para entreter a Deus, mas para nos humilharmos e exaltar o Seu nome em espírito e em verdade.”

O QUE SE TORNOU, AFINAL, O LOUVOR CONTEMPORÂNEO?

Onde antes exaltávamos a majestade de Deus, sua santidade e soberania — cantando a um Deus que é o totalmente outro — hoje parece que temos nos voltado para canções que nos colocam no centro. A liturgia da adoração deu lugar à liturgia da autoafirmação. O trono foi substituído pelo espelho. Este texto é um convite à reflexão sobre essa mudança silenciosa, porém profunda, que transformou parte do louvor em uma espécie de autoajuda espiritualizada — e sobre o urgente retorno ao louvor bíblico: reverente, rendido, centrado em Deus e não em nós.

É verdade: não se trata de rejeitar a beleza melódica ou a qualidade técnica das canções modernas. Existem, sim, louvores profundamente bíblicos e espiritualmente saudáveis sendo compostos hoje. Mas meu incômodo vai além do som. Trata-se do centro. De quem ou do que se tornou o sujeito oculto, ou antes, o sujeito evidente da adoração: nós mesmos.

Muitas das canções mais entoadas atualmente giram em torno de frases como “você tem valor”, “você é precioso”, “Deus vai te exaltar”, “te dar vitória”, “abrir portas”, “curar sua alma ferida”. Tudo verdade, se lido no contexto certo. Mas, isolado, isso se torna a catequese de um hedonismo piedoso — onde o homem se torna o fim último da ação divina. E Deus, um tipo de gênio da lâmpada celestial.

Mas a oferta de Deus, como bem diz o apóstolo Paulo, foi a cruz — “porque a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus” (1 Coríntios 1.18). Ele não ofereceu uma promessa de conforto, mas um chamado ao discipulado — com renúncia, cruz, perseverança: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me” (Lucas 9.23), “Se alguém quiser ser meu discípulo, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mateus 16.24). O Filho amado não veio para nos mimar, mas para nos salvar. E isso nos deveria bastar: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele” (João 3.16-17).

A lógica do Reino é esta: “Se com Ele sofremos, com Ele também seremos glorificados” (Romanos 8.17) — mas a glória só vem depois da cruz.

O louvor que se oferece como alento emocional, mas não conduz ao arrependimento, é um embuste. A música que massageia o ego, mas não leva ao trono de Deus, é apenas entretenimento religioso. E isso é um risco grave. Como nos alertava A. W. Tozer, “o cristianismo moderno se tornou racionalista e centrado no homem, em vez de ser espiritual e centrado em Deus”.

No passado, nossos hinos diziam “Tu és fiel, Senhor”, “Santo, Santo, Santo”, “Grandioso és Tu”, “Te exaltamos, ó Cordeiro”. A gramática da adoração era vertical, sacra, cheia de reverência. Hoje, muitas letras parecem mais janelas de autoajuda que altares de rendição. Onde antes dizíamos “Tu és”, agora dizemos “Eu sou”. Onde se dizia “Te exaltamos”, agora se ouve “eu vencerei”.

E não é que toda música moderna seja má. Deus tem levantado adoradores sinceros nesta geração — compositores e ministros que compreendem que louvor é sacrifício, não agrado, como declara a Escritura: “Por meio de Jesus, ofereçamos a Deus, continuamente, sacrifício de louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome” (Hebreus 13.15). Mas são minoria. E não podemos confundir exceção com regra.

O louvor bíblico é centrado em Deus e na sua glória. Ele nasce do temor — “Tema toda a terra ao Senhor; temam-no todos os habitantes do mundo” (Salmo 33.8), passa pela gratidão — “Entrem por suas portas com ações de graças e em seus átrios com louvor; deem-lhe graças e bendigam o seu nome” (Salmo 100.4), floresce na confiança — “Ele pôs um novo cântico em minha boca, um hino de louvor ao nosso Deus. Muitos verão isso e temerão, e confiarão no Senhor” (Salmo 40.3), e se consuma na obediência — “Acaso o Senhor tem tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? A obediência é melhor do que o sacrifício” (1 Samuel 15.22). Ele não é um lugar de consolo terapêutico apenas, mas de consagração total. Ele não massageia o coração do homem; ele o oferece, quebrantado, diante do trono — “Os sacrifícios que agradam a Deus são um espírito quebrantado; um coração quebrantado e contrito, ó Deus, não desprezarás” (Salmo 51.17).

Precisamos voltar. Voltar ao Deus que não bajula, mas santifica. Que não promete conforto, mas dá propósito. Que nos leva aos desertos não por crueldade, mas por misericórdia — “Lembrem-se de como o Senhor, o seu Deus, os conduziu por todo o caminho no deserto durante estes quarenta anos, para humilhá-los e pô-los à prova, a fim de saber o que estava em seus corações... Ele os humilhou, fazendo-os passar fome e depois os sustentou com maná... para ensinar-lhes que nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca do Senhor” (Deuteronômio 8.2-3). A confiança, como diz Paulo, nasce da perseverança, não da comodidade — “a tribulação produz perseverança; a perseverança, um caráter aprovado; e o caráter aprovado, esperança” (Romanos 5.3-4).

Como escreveu Dietrich Bonhoeffer, mártir da fé diante do nazismo: “A graça barata é o inimigo mortal da Igreja. É a graça sem discipulado, sem cruz, sem Jesus Cristo vivo e encarnado.”

Que o nosso louvor, então, não seja barato. Que ele custe nosso orgulho, nossa vontade, nosso centro. E devolva o trono a quem de direito: ao Rei dos reis. 

O Cordeiro no Trono - A Surpreendente Vitória do Amor


Por Jânsen Leiros Jr.

 

A ressurreição é mais do que uma demonstração mágica de poder. É a manifestação da vitória da vida sobre a morte — o caminho trilhado pelo Cordeiro rumo ao trono.

Karl Barth

"A majestade de Deus se revela na humilhação de Jesus Cristo; seu trono não está acima do sofrimento humano, mas bem no centro dele."

Jürgen Moltmann

"A ressurreição de Cristo é a resposta de Deus à crucificação; o trono do Cordeiro é o lugar onde a esperança ressurge do coração da dor."

Tomás de Aquino

"O Cristo que reina é o mesmo que se entregou; não há glória sem a cruz, pois nela se manifesta o amor que salva."

Dietrich Bonhoeffer

"A ressurreição de Cristo não é o cancelamento da cruz, mas sua confirmação. O Crucificado é o Ressurreto, e é assim que Ele reina — não escapando da dor, mas triunfando através dela."

N. T. Wright

"A ressurreição é o momento em que a nova criação irrompe dentro da velha; é o trono erguido no coração da tragédia, onde o Cordeiro reina não apesar da morte, mas por ter passado por ela."

Karl Barth

"A ressurreição não é a glorificação de um herói caído, mas a proclamação de que o Cordeiro morto está vivo — e, exatamente por isso, é digno de abrir o livro e governar o mundo."

No calendário cristão, o Domingo da Ressurreição é o clímax da esperança. Após a dor da cruz e o silêncio do sepulcro, o anúncio da vida rompe o véu da desesperança e inaugura uma nova realidade. No entanto, o que poucos percebem é que a ressurreição não é apenas o ponto final de um drama — é o ponto de partida de uma entronização. O túmulo vazio não é só sinal de milagre; é selo de autoridade.

Ao ressuscitar, Jesus não apenas vence a morte — Ele inaugura um novo tipo de reinado. Não é entronizado com pompas humanas, mas como o Cordeiro, ferido e vitorioso. No centro da revelação apocalíptica, João nos conduz além do jardim vazio e da pedra removida. Ele nos transporta ao trono de Deus, onde a verdadeira cena pascal se desenrola com toda sua beleza paradoxal.

A TEOLOGIA DO CORDEIRO: FORÇA NA FRAGILIDADE

Entre os ecos celestes e os mistérios que envolvem o trono eterno, há uma cena que desafia toda lógica humana: um Cordeiro. Mas não qualquer cordeiro — um Cordeiro que parecia ter sido morto. Não um leão rugindo em glória, não um rei revestido de guerra, mas um Cordeiro — frágil na aparência, mas absoluto em autoridade.

Apocalipse 5:6 descreve: “E olhei, e eis que estava no meio do trono... um Cordeiro como havendo sido morto.” O contraste é proposital. João ouve a proclamação do Leão de Judá, mas quando olha, vê um Cordeiro. Essa inversão revela o coração da teologia cristã: a verdadeira realeza de Cristo não está em sua força militar, mas em sua entrega sacrificial. O poder que conquista não é o da espada, mas o da cruz. A autoridade que prevalece não é a que domina, mas a que se entrega.

UM REINADO QUE DESAFIA O ESPÍRITO DO MUNDO

Essa cena confronta diretamente o espírito triunfalista que permeia muitos púlpitos modernos, nos quais Cristo é apresentado quase como um coach espiritual, um general bélico ou um empresário celestial pronto a empoderar seus seguidores para o sucesso terreno. Mas o trono que João vê não é ocupado por um conquistador ufanista — é ocupado por um Cordeiro imolado.

A lógica do Reino de Deus subverte a lógica do mundo. Em vez de glória visível, há feridas visíveis. Em vez de louros terrenos, há marcas de cravos. Jesus não é coroado apesar da cruz, mas por causa dela. Filipenses 2:8–9 expressa isso com clareza: “E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso Deus também o exaltou soberanamente...”

A vitória da ressurreição, portanto, não é uma negação do sofrimento, mas sua redenção. E isso é escandaloso para uma fé que insiste em suprimir o sofrimento em nome de uma espiritualidade triunfante.

A ADORAÇÃO CÓSMICA AO CORDEIRO

A resposta do céu a essa entronização é a adoração. Toda a criação — anjos, anciãos, seres viventes e vozes incontáveis — se prostram diante do Cordeiro. Apocalipse 5:12 registra: “Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor.” A centralidade de Cristo é absoluta. Não há outro digno. Nem sistema religioso, nem profeta, nem nação, nem ideologia. O trono pertence ao Cordeiro, e só a Ele.

É importante destacar: Cristo não reina apesar de ter sido morto — Ele reina como aquele que foi morto. A sua morte é o ato fundador do seu Reino. A cruz não foi um contratempo no plano — foi o plano.

A ESPIRITUALIDADE DA ENTREGA: UM CHAMADO AO SEGUIDOR

Esse retrato do Cristo glorificado deve ser um espelho para os discípulos. A igreja é chamada a seguir o Cordeiro por onde quer que vá (Ap 14:4), o que significa viver segundo a mesma lógica da entrega, da humildade, do serviço e da confiança na justiça de Deus — ainda que essa justiça demore a se revelar plenamente.

Isso desafia a teologia de vitrine, que vende “milagres” como se fossem produtos e a fé como moeda de troca. O Cristo do Apocalipse não se parece com esses ídolos. Ele reina não para nos mimar, mas para nos formar. Não para nos dar o mundo, mas para nos ensinar a carregar a cruz até a glória.

CONCLUSÃO: UM REINO DE ESPERANÇA CONTRA TODA ESPERANÇA

O Cordeiro no trono é o anúncio de que a última palavra não pertence ao império, ao pecado ou à morte. Ela pertence àquele que venceu, não por esmagar, mas por se deixar moer (Isaías 53:5–7).

A ressurreição é o selo dessa vitória silenciosa, escandalosa, divina. Em um tempo de adorações distraídas, fé superficial e espiritualidade de palco, o chamado é para nos rendermos novamente — ou talvez pela primeira vez — ao Cordeiro.

Porque Ele vive, o trono está ocupado. E porque o trono está ocupado, há esperança.

 

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Jesus o Cordeiro: Símbolo, silêncio e sacrifício

 

Por Jânsen Leiros Jr.

 

Quando o símbolo se faz carne e o silêncio grita redenção. A presença do Cordeiro atravessa a história — do Éden ao Calvário, do altar ao pão. Mais que uma lembrança pascal, uma entrega plena: viva, silenciosa e eterna. 

Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI)

"O sacrifício de Cristo é o único que dá sentido a todos os sacrifícios que precederam; Ele é o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo e redime toda a humanidade."

Hans Urs von Balthasar

"A cruz de Cristo é o ponto em que todas as sombras se encontram, onde o símbolo de todas as esperanças se torna a realidade, e o Cordeiro sacrificado revela toda a profundidade do amor de Deus."

João Calvino

"Cristo, nosso Cordeiro, não veio apenas como símbolo da redenção, mas como a própria realidade da expiação, substituindo a antiga Páscoa com o preço de Sua própria vida."

Martyn Lloyd-Jones

"O sacrifício de Cristo não é apenas uma lição moral ou uma alegoria; Ele é o cumprimento de tudo o que foi apontado pelas sombras da Lei, especialmente pelo Cordeiro Pascal. Em Sua morte, a verdadeira Páscoa é consumada."

Jonathan Bernis

"O Cordeiro Pascal, sacrificado durante o Êxodo, é uma sombra que aponta diretamente para Yeshua, o verdadeiro Cordeiro de Deus, cuja morte nos liberta de toda escravidão espiritual."

Itzhak Shapira

"A figura do Cordeiro na Páscoa não é apenas um rito antigo, mas um testemunho da obra de Yeshua, que, ao morrer como o Cordeiro sacrificial, cumpre a promessa de redenção de Israel e do mundo." 

Todos os anos, principalmente por volta do período da Páscoa, surgem discussões sobre questões consideradas pilares da fé cristã e que, em contrapartida, representam a negação primordial de crenças contrárias ao cristianismo. E é bem verdade que, com a popularização das redes sociais e sua utilização para disseminar ideias, a difusão de pensamentos que tentam esvaziar a fé no Cordeiro de Deus tem sido imensamente ampliada.

Quando tais ideias ou apologias acaloradas e contrárias veem daqueles que vivem fés divergentes, entende-se facilmente, pois a própria conceituação de suas crenças exclui, por definição, a identidade de Jesus como esse Cordeiro de Deus. O que causa maior preocupação — ou mesmo um incômodo — no entanto, é quando tais defesas, ou poderíamos chamar de ataques, não passam de fogo amigo no confronto de pensamentos teológicos.

Recentemente, uma digital influencer afirmou, em um vídeo que circula nas redes sociais[1], que Jesus não é o Cordeiro Pascal. Ela sustenta que a única menção a Jesus como tal é feita por Paulo, e que Paulo, afinal, não estava com Jesus na Ceia da Páscoa. Ela argumenta, ainda, que nesta mesma Ceia, Jesus se refere apenas ao pão e ao vinho como seu corpo e sangue, mas não faz menção de ser ele o cordeiro. Isso, segundo ela, invalidaria a interpretação de Jesus como Cordeiro Pascal, apontando tal leitura como um grave equívoco teológico. Para ela, o cordeiro da Páscoa judaica estaria apenas relacionado à festa em si, e não à morte, ressurreição ou expiação, como se a Páscoa fosse mero evento de celebração identitária, e não memorial da redenção.

Mas... será mesmo?

Será que essa ausência explícita do cordeiro na Ceia é reveladora e determinante para sustentar essa desconstrução da simbologia cristã? Ou seria exatamente esse silêncio, juntamente com outros detalhes profundos e coerentes, a chave para a revelação tácita, contundente e inevitável da identidade de Jesus como o Cordeiro de Deus?

Para isso, é preciso dar alguns passos para trás. E voltar ao início.

Antes do Êxodo: o cordeiro já sangrava

O cordeiro morto no Êxodo, na noite da libertação dos hebreus da escravidão do Egito, não foi o primeiro cordeiro sacrificado na Bíblia. Longe disso. A lógica da substituição já palpitava nos primeiros capítulos do Gênesis, como uma sombra que anunciava o mistério da cruz.

A oferta de Abel (Gn 4:4), feita dos primogênitos do rebanho, já revela que a vida inocente é recebida por Deus como oferta agradável. O autor de Hebreus, aliás, reconhece Abel como o primeiro mártir da fé sacrificial. Logo adiante, no Éden, Deus cobre a nudez de Adão e Eva com peles — o que sugere a morte do primeiro animal da história para cobrir a vergonha do pecado humano. A veste é feita com sangue. A inocência cobre a culpa.

Mas o episódio mais simbólico e antecipatório do sacrifício substitutivo é o de Abraão e Isaque. Ali, sobre o monte Moriá, Deus provê um carneiro para morrer no lugar do filho. Um pai disposto a entregar o filho, e um cordeiro que toma o lugar. Não é difícil perceber ali o eco da cruz. O próprio Martyn Lloyd-Jones, gigante da tradição reformada, via nesse episódio um prenúncio direto da substituição penal realizada por Cristo, o verdadeiro “Deus proverá para si o cordeiro”.

Tudo isso ocorre antes mesmo da instituição da Páscoa no Êxodo. Ou seja: a teologia do cordeiro antecede o Egito.

O Cordeiro da Páscoa: símbolo da redenção

Quando chegamos à noite fatídica de Êxodo 12, o cordeiro é finalmente fixado como memorial. Um cordeiro sem mácula deveria ser morto. O sangue passado nos umbrais da porta impediria o anjo da morte de ferir os primogênitos daquela casa. Aqui, a equação é direta: um morre para que o outro viva. É o ápice da substituição.

Ignorar o conteúdo sacrificial do cordeiro pascal, como faz a tal influencer, é ler Êxodo como um rito cultural e não como revelação de um princípio espiritual. O cordeiro morre no lugar. E quem estiver abrigado sob o sangue está protegido da morte. A leitura messiânica, tanto entre judeus convertidos quanto entre cristãos antigos, sempre viu ali a semente do sacrifício de Cristo.

Basta ler os Pais da Igreja: Inácio de Antioquia, Irineu, Justino... todos reconhecem a tipologia do cordeiro. E, mais recentemente, o teólogo católico Joseph Ratzinger (Bento XVI) escreveu que “o verdadeiro cordeiro pascal agora é uma pessoa. A carne e o sangue da antiga páscoa agora se convertem no próprio corpo de Cristo, dado em sacrifício”. A ceia se converte em altar. O cordeiro está ali — mas já não sobre a mesa, e sim no homem que parte o pão.

O silêncio que fala

Mas, e na Ceia? Por que Jesus não se refere diretamente a si como o cordeiro?

Exatamente porque já não era necessário apontar para o símbolo. Ele era o cumprimento do símbolo. O cordeiro não precisa mais ser lembrado com palavras quando está ali, presente, prestes a ser imolado — em carne, sangue, alma e missão. Diante do mistério da redenção que se aproxima, o silêncio não é omissão, é plenitude.

Na mesa do Sêder, três elementos compunham a liturgia memorial: o pão, o vinho e o cordeiro. No entanto, ao renovar o sentido da Ceia, Jesus destaca apenas dois: o pão e o vinho. Não porque o cordeiro perdeu valor, mas porque seu valor foi consumado n’Ele. O pão já não representava apenas o alimento da pressa, nem o vinho o fruto da festa. Agora, ambos se tornam memória viva do corpo e do sangue do verdadeiro Cordeiro — que, por isso mesmo, não volta ao prato, porque foi entregue de uma vez por todas.

Essa omissão aparente é, na verdade, o testemunho definitivo: o Cordeiro está ali, à mesa, e irá à cruz. O símbolo é absorvido pela realidade. A profecia se encarna. A sombra se curva à luz.

O teólogo anglicano John Stott, em sua obra-prima A Cruz de Cristo, observa com precisão: a ausência do cordeiro na fala de Jesus não representa uma lacuna, mas o ápice da revelação simbólica. Ele não precisa dizer: “Eu sou o cordeiro” — Ele é o Cordeiro. Sua morte iminente grita mais alto do que qualquer afirmação verbal. O cordeiro da nova aliança já não se repete a cada ano. Ele morre uma vez — e para sempre.

A confirmação dos evangelhos: João vê e aponta

A teologia do cordeiro em Jesus não depende apenas de Paulo, como se afirma no vídeo citado. O próprio evangelista João relata que, ao ver Jesus se aproximando, João Batista exclama: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (Jo 1:29). Uma expressão densa, cheia de ecos veterotestamentários, especialmente da tipologia do Êxodo e das palavras de Isaías sobre o Servo Sofredor (Is 53:7), levado como cordeiro ao matadouro.

É também João quem relata, com detalhe litúrgico, que Jesus morre exatamente no momento em que os cordeiros pascais eram imolados no Templo (Jo 19:31–36). E é João quem conecta a morte de Cristo ao cuidado profético da Páscoa ao dizer que nenhum de seus ossos foi quebrado — tal como exigia o mandamento mosaico (Êx 12:46; Sl 34:20). Isso não é acaso. É cumprimento.

A leitura rabínica messiânica: quando o cordeiro ganha voz entre os judeus

Mas a beleza do argumento cristão sobre Jesus como o Cordeiro Pascal não repousa apenas sobre os pilares da teologia sistemática reformada ou patrística. Ele encontra eco também entre rabinos messiânicos, judeus que, crendo em Yeshua (Jesus) como o Messias, nos ajudam a reler a tipologia mosaica com os olhos do cumprimento. E que reforçam: o Cordeiro do Êxodo era uma sombra. Cristo é a substância.

Um dos mais respeitados nomes nessa linha é o rabino Dr. Jonathan Bernis, autor de A Jewish Guide to the Passover e líder do ministério Jewish Voice Ministries International, com sede em Phoenix, Arizona. Bernis afirma com veemência que o Cordeiro Pascal — o Korban Pesach — era uma antecipação profética da obra de redenção consumada por Yeshua na cruz, e que todos os elementos da celebração do Sêder apontam, profética e simbolicamente, para Ele.

Outro expoente é o rabino messiânico Itzhak Shapira, autor do impactante The Return of the Kosher Pig. Shapira, nascido em Israel e rabino ordenado, dirige a Yeshivat Shuvu, uma escola internacional de discipulado messiânico. Em seus ensinos, ele demonstra como o Mashiach ben Yosef — o Messias Sofredor — se manifesta de forma inequívoca na Páscoa, e como Jesus cumpre perfeitamente os requisitos do Cordeiro sacrificial, tanto em sua inocência quanto no momento de sua morte: “na hora em que os cordeiros eram mortos no Templo, Yeshua entregava seu espírito na cruz.”

Caberia ainda mencionar o testemunho de Dr. Michael Brown, teólogo judeu-messiânico, autor de Answering Jewish Objections to Jesus, e figura presente em debates acadêmicos entre cristãos e judeus ortodoxos. Brown não apenas sustenta, mas argumenta com profundidade exegética que a narrativa do Evangelho de João conecta intencionalmente Jesus ao cordeiro pascal (Jo 19:36), quando afirma: “Nenhum dos seus ossos será quebrado”, citando o mandamento de Êxodo 12:46.

Esses nomes e suas contribuições não apenas ampliam a base argumentativa como nos conduzem a um entendimento mais sólido de que a fé cristã não nasceu à revelia do judaísmo, mas brotou de dentro dele — das suas festas, da sua esperança, da sua liturgia e da sua promessa.

Sim, Ele é o Cordeiro

Portanto, ao contrário do que tenta afirmar o vídeo mencionado, a identidade de Jesus como o Cordeiro Pascal não se apoia em uma única fala de Paulo, mas numa linha teológica profunda, ampla, coerente e revelada desde o Gênesis. Está escrita na história de Abraão e Isaque. Está cantada nos Salmos. Está desenhada nos contornos do Êxodo. Está dramatizada nos evangelhos. Está celebrada na Ceia. E está proclamada no Apocalipse, onde João declara que o Cordeiro está no trono e recebe honra, glória e poder para todo o sempre (Ap 5:12–13).

Negar isso não é só um problema de interpretação. É um problema de revelação. Porque, para quem tem olhos de fé, o Cordeiro sempre esteve lá. Na mesa, na cruz… e no trono.

 

sábado, 12 de abril de 2025

A "intimidade com Deus" e a armadilha do sentimentalismo evangélico

Por Jânsen Leiros Jr.


Quando a emoção vira critério de espiritualidade, e a linguagem piedosa esconde uma teologia rasa, é hora de revisitar os fundamentos da fé. 

John MacArthur

“Muitos cristãos modernos não querem ser ensinados, querem ser entretidos. Confundem lágrimas com arrependimento, arrepio com presença de Deus, e euforia com fé.”

Martyn Lloyd-Jones

“O maior perigo para a fé é quando se busca experiência em vez da verdade. Porque a verdade transforma, a experiência apenas impressiona.”

Francis Schaeffer

“Se não há verdade, não pode haver fé cristã. Se a fé cristã é apenas uma experiência subjetiva, então ela não é diferente de qualquer emoção religiosa pagã.”

Jonathan Edwards

“As afeições religiosas verdadeiras nascem da luz da verdade que ilumina o coração — e não do calor da emoção que apenas aquece a superfície.”

C.S. Lewis

“Se você busca uma religião feita para o seu conforto, eu certamente não lhe recomendaria o cristianismo.”

A espiritualidade evangélica contemporânea, especialmente nos círculos mais carismáticos e afetivos da fé, tem adotado com entusiasmo a expressão “intimidade com Deus”. É um mantra repetido nos louvores, sermões, devocionais, livros e conselhos pastorais. A ideia seduz, encanta e emociona. Afinal, quem não gostaria de ser íntimo do Criador, aquele que governa os céus e a terra, e que nos ama com amor eterno?

Mas será que essa “intimidade” é uma categoria teológica legítima? Ou será que estamos usando uma palavra bonita para tentar expressar uma experiência que não compreendemos completamente — ou, pior, que reinventamos à nossa imagem e semelhança?

Conhecimento mútuo: a exigência que a intimidade impõe

Intimidade, no conceito comum, não é apenas proximidade ou convivência; é o conhecimento mútuo e voluntário entre dois seres conscientes de si. É quando duas pessoas se revelam uma à outra, se expõem, se abrem, se permitem ser conhecidas sem reservas. E aqui reside a primeira dissonância com a relação entre o ser humano e Deus.

Porque, se é verdade que Deus nos conhece de forma total e absoluta — “Antes mesmo que a palavra me chegue à língua, tu já a conheces inteiramente, Senhor” (Sl 139.4) —, também é verdade que o contrário jamais se dá. Nós jamais O conheceremos dessa forma, nem nesta era e, possivelmente, nem na glória, uma vez que o ser de Deus é infinitamente transcendente. Nosso conhecimento dEle se dá unicamente por Sua auto-revelação — nas Escrituras, em Cristo e na ação iluminadora do Espírito Santo (Jo 1.18; 1Co 2.10-12). Como lembra Karl Barth, “Deus se revela, Deus se revela a si mesmo, Deus se revela como amor.” Ou seja, o acesso a Deus não é espontâneo, mas concedido.

Portanto, se o nosso conhecimento de Deus é unilateralmente concedido, assimétrico por natureza e mediado pela fé, como podemos falar em intimidade nos moldes humanos? Intimidade pressupõe igualdade de acesso ao outro, mas, no caso de Deus, é Ele quem estabelece os termos — e não nós.

A espiritualidade sentimentalóide e o risco do autoengano

É nesse ponto que a crítica se intensifica. Intimidade, no conceito moderno, parece mais uma fantasia emocional do que uma realidade teológica. Tornou-se uma ideia moldada por uma cultura afetiva, terapêutica e centrada no eu, onde experiências emocionais intensas são confundidas com profundidade espiritual.

Na prática, essa busca por "intimidade" acaba funcionando como uma espécie de substituto para a verdadeira transformação espiritual. Confunde-se calor emocional com presença de Deus, confissão com vulnerabilidade terapêutica, lágrimas com santidade. O que se deseja é uma “presença divina” que nos cause arrepio, mas sem necessariamente nos transformar segundo o caráter de Cristo. Há uma ânsia por ser tocado por Deus, mas não necessariamente por ser moldado por Ele.

Paul Washer alertou certa vez: “A evidência da salvação não é um sentimento de que você está salvo, mas uma vida que demonstra que você foi transformado.” A Palavra ecoa essa mesma lógica: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama” (Jo 14.21). Em nenhum momento Jesus sugere que a emoção seja critério de proximidade; Ele fala de obediência, de permanência, de transformação.

Uma fé que se refugia no universo gospel

O que se convencionou chamar de “intimidade com Deus” tem, muitas vezes, funcionado como porta de entrada para um estilo de vida “gospelizado”, em que tudo gira em torno de um submundo cultural cristão: a música é gospel, a moda é gospel, as amizades são gospel, o consumo é gospel. Uma bolha onde a vida é protegida da realidade, mas não necessariamente santificada por ela.

Esse fenômeno, por vezes, se aproxima perigosamente de um novo tipo de nacionalismo judaico — onde a pertença ao grupo "dos íntimos de Deus" substitui a vivência da cruz. Mas a verdadeira espiritualidade não se limita à cultura que nos cerca. Ela se manifesta na entrega: Eis-me aqui, como disse Isaías (Is 6.8), ainda tremendo diante da santidade de Deus. Essa disposição é o cerne da fé bíblica: não um desejo de sentir, mas uma prontidão para obedecer.

O que as Escrituras realmente propõem

A Bíblia não nos convoca à intimidade, mas à comunhão (koinonia), à obediência, à reverência, à santidade. A espiritualidade bíblica é relacional, sim, mas marcada por assimetria, temor e redenção. Não há cumplicidade emocional entre Criador e criatura. Há aliança. E ela é baseada na fidelidade dEle e na nossa resposta a essa fidelidade.

O apóstolo Paulo nunca disse que buscava intimidade com Deus. Disse que queria “conhecê-lo, e o poder da sua ressurreição, e a participação dos seus sofrimentos” (Fp 3.10). Queria ser conformado com Cristo, não acariciado por Ele.

Portanto, talvez devamos parar de romantizar uma relação que, na verdade, exige obediência, humildade e entrega — não emoção contínua. A pergunta que deveria ecoar em nossos corações não é "quão íntimo estou de Deus?", mas sim: tenho vivido de modo digno da vocação que recebi? (Ef 4.1).

 


segunda-feira, 7 de abril de 2025

Quando o milagre não depende de você

Por Jânsen Leiros Jr. 

A fé cristã é racional porque se fundamenta em evidências e experiências, ainda que transcenda a razão.” - Alister McGrath; teólogo anglicano e cientista; Dúvida: Certeza e Compromisso na Vida Cristã

"A luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus; por isso, não se podem contradizer entre si." - Santo Tomás de Aquino; Fides et Ratio, Encíclica de João Paulo II citando Aquino

"A soberania de Deus nunca anulou a responsabilidade humana. Deus age conforme Sua vontade, e nossa confiança deve repousar em Sua providência." - Augustus Nicodemus; teólogo e pastor presbiteriano

"Que não nos envergonhemos da doutrina bíblica da absoluta soberania de Deus, não peçamos desculpas pela verdade de Deus, mas que antes, venhamos a proclamá-la." - A.W. Pink; teólogo reformado

"A espera em Deus é uma lição que poucos aprendem plenamente." - Charles Spurgeon; pregador; Sermões

"Logo, pois, compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer." -Romanos 9:18

Nos dias atuais, tem se tornado comum encontrar publicações que romantizam a chamada “fé cega” como virtude superior, exaltando a atitude de Pedro no episódio da pesca milagrosa (Lucas 5) como uma obediência inquestionável, fruto de uma fé pronta, convicta e até exemplar. Alguns chegam a usar esse modelo como prova de que é justamente a fé desmedida, irracional e submissa que move o coração de Deus. No entanto, uma leitura mais acurada e conectada ao contexto bíblico e humano do episódio revela nuances muito mais profundas — e, paradoxalmente, mais reveladoras sobre o que é, de fato, a fé cristã.

Em Lucas 5:5, quando Pedro responde a Jesus: "Sob a tua palavra, lançarei as redes", muitos estudiosos e pregadores interpretam essa atitude como uma obediência absoluta, uma confiança plena no que Jesus dizia. Contudo, ao analisar o contexto, fica claro que Pedro não estava, de fato, demonstrando uma fé cega ou incondicional. Em vez disso, ele estava fazendo uma aposta — uma aposta na possibilidade de que Jesus fosse mais do que o "mestre itinerante" que as multidões falavam. Ele não estava apenas obedecendo sem questionar; ele estava disposto a testar se, de fato, Jesus era quem ele dizia ser. E, nesse ato de testar, Pedro se posiciona no limiar entre a dúvida e a fé, entre o ceticismo e a possibilidade de um encontro genuíno com o Divino.

Pedro, como pescador experiente, sabia que a melhor hora para pescar era durante a noite, quando os peixes estavam mais ativos. Ele havia passado toda a noite sem sucesso, e sua experiência e conhecimento técnico o haviam levado a concluir que nada mais seria possível. Quando Jesus, sem ser pescador, sugeriu que ele lançasse as redes novamente, Pedro não estava simplesmente obedecendo. Ele estava, talvez de forma relutante, dando a Jesus a chance de provar algo novo. O texto revela a complexidade da resposta de Pedro: “Mas, já que tu mandas, vou lançar as redes.” Ele não se entregou a uma fé sem questionamento, mas aceitou um desafio, disposto a ir além do que a razão e a experiência lhe diziam.

A visão de que Pedro obedeceu sem questionar é uma simplificação excessiva do que realmente aconteceu. Ao invés de uma fé sem razão ou sem questionamentos, Pedro foi fisgado pela possibilidade de que algo extraordinário poderia acontecer, o que, de fato, aconteceu quando as redes se encheram de peixes. Esse milagre não foi apenas um teste da fé de Pedro, mas uma manifestação do poder soberano de Deus, algo que transcende nossa capacidade de compreendê-lo completamente, mas que não exige nossa aceitação passiva ou irracional.

Essa dimensão do questionamento como parte do caminho da fé é recorrente nas Escrituras. Abraão, o “pai da fé”, questiona a Deus sobre como poderia se tornar pai de uma grande nação se já era avançado em idade e Sara, sua esposa, estéril e idosa (Gênesis 15:2-6; 17:17). Moisés, diante da sarça ardente, hesita diante da missão divina, apontando suas limitações pessoais e seu receio de não ser ouvido pelo povo (Êxodo 3:11; 4:1,10). E Maria, ao ouvir do anjo a promessa da concepção virginal, indaga: "Como se fará isso, pois não conheço homem algum?" (Lucas 1:34). Em todos esses casos, Deus não repreende o questionamento. Ao contrário, Ele reafirma sua promessa e revela o “como” realizará sua vontade. A fé, portanto, não exclui o desejo de compreensão; ela se fortalece na Palavra explicada, sustentada pela própria revelação divina. É nesse chão de diálogo — entre o humano que pergunta e o divino que responde — que nasce uma fé vigorosa, comprometida e real.

A interpretação da fé de Pedro como sendo um “teste” e não uma fé cega também nos ajuda a entender melhor outros episódios da vida de Pedro. Ele era um homem cheio de falhas e incertezas, como evidenciado por sua reação ao ser convidado a andar sobre as águas (Mateus 14:28-31) ou pelo episódio de negar a Jesus (Mateus 26:69-75). A fé de Pedro não foi uma fé inquestionável e sem falhas; foi, sim, uma fé construída por meio de provas, questionamentos, dúvidas e, acima de tudo, encontros com Jesus que o transformaram.

A fé cristã não se constrói em um vazio de ignorância ou passividade. A fé que a Bíblia nos chama a ter é aquela que se baseia na revelação de Deus, que é tanto racional quanto experimental, que se desenvolve por meio do relacionamento com Deus e não por uma simples obediência a um conjunto de regras ou palavras. Quando Jesus confronta Pedro, não está chamando à obediência cega, mas à confiança baseada no que Ele estava prestes a mostrar.

O mesmo se aplica a outras histórias que destacam o caráter soberano de Deus na realização de milagres. Por exemplo, no episódio da viúva de Naim (Lucas 7:11-17), vemos uma mulher que perdeu seu único filho e estava em um lamento profundo. Ela não pediu nada a Jesus, mas Ele, movido por compaixão, restaurou a vida de seu filho. O milagre não foi resultado da fé ou do pedido da mãe; foi uma ação soberana de Jesus, que não aguardou que a mulher pedisse ou demonstrasse uma fé específica. Isso é uma evidência clara de que os milagres de Deus não dependem de nossa fé ou de nossas palavras, mas de Sua misericórdia e soberania.

A ideia de que Deus responde apenas à nossa fé, como se Ele fosse movido por nossas atitudes, pode levar a uma visão distorcida de Deus, como se Ele fosse um ser que faz negócios conosco, em vez de um Deus soberano que age de acordo com Sua vontade. O perigo de afirmar que o milagre depende exclusivamente de nossa fé é colocar Deus na posição de um "ídolo", de quem esperamos algo em troca de nossas ações ou palavras. Isso pode transformar a fé em uma moeda de troca, onde nossa confiança em Deus é condicionada a resultados visíveis e imediatos, algo totalmente alienado da verdadeira essência do cristianismo.

Essa concepção de que Deus tem uma “caixa de milagres” individual, que seria aberta à medida que alcançamos certo grau de fé ou demonstramos as atitudes "certas", se aproxima perigosamente de uma espiritualidade meritocrática, onde a graça se torna uma recompensa e não um dom. Reduz-se a providência divina a um sistema de “input e output” espiritual, como se Deus estivesse preso a um roteiro que depende exclusivamente de nossas emoções, palavras ou gestos. Essa leitura condiciona o agir de Deus ao nosso desempenho, como se o Criador estivesse limitado por nossos acertos, e não fosse Ele mesmo a origem de toda boa dádiva (Tiago 1:17).

A ideia de que Deus funciona segundo um “algoritmo espiritual”, abrindo compartimentos de bênçãos conforme a intensidade ou qualidade da nossa fé, de fato distorce completamente a doutrina da graça e coloca o ser humano no centro do processo, como se fosse ele o protagonista do milagre, e não Deus. Esse é um dos grandes desvios da espiritualidade contemporânea, que é o culto ao “mover” como espetáculo e à fé como técnica.

Trata-se, no fundo, de uma tentativa de controlar o incontrolável — de transformar o mistério da ação de Deus em uma fórmula previsível. Uma espécie de “misticismo evangélico” em que a bênção é tratada como um prêmio por obediência performática, ou a fé como um mecanismo mágico que aciona o céu. Essa perspectiva enfraquece a confiança na soberania divina e nos afasta da experiência bíblica, que mostra um Deus que age conforme Sua vontade, movido por misericórdia e compaixão — e não por regras humanas ou expectativas de comportamento espiritual. O Deus revelado nas Escrituras não é um gênio da lâmpada acionado por frases certas, mas um Pai que conhece nossas limitações e cuida de nós com liberdade, graça e soberania.

Por isso, o verdadeiro milagre é o próprio Deus vindo ao nosso encontro, mesmo quando não temos forças para buscá-Lo. Não é sobre “se posicionar”, mas sobre ser alcançado. Não é sobre acionar promessas, mas sobre confiar em um Deus que age por quem n’Ele espera (Isaías 64:4).

E esperar, às vezes, é tudo o que conseguimos fazer. E, por graça, é tudo o que Ele pede.

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